quinta-feira, 27 de junho de 2024

A SECA, A CHUVA E O SAPO - A escrita do mestre Artur Queirós

 

Artur Queirós. Foto: Camocim Online.



    Uma das múltiplas habilidades do memorialista camocinense Artur Queirós era a de ser correspondente para vários jornais do Ceará. Sempre sonhei em ter acesso a este material jornalístico como fonte histórica. Imagino que deve ter algo desse período no seu sobrado, mas não se tem acesso ao seu imenso acervo.
    Nas minhas peregrinações pelo mundo virtual, me deparei com uma notícia da seca de 1958 enviada por Artur Queirós. E uma raridade, uma pérola do jornalismo e da capacidade escritural do nosso correspondente. Numa simples nota, ele consegue aliar a riqueza de detalhes com a concisão jornalística com laivos literários, sem deixar de informar. Vamos a notícia:

0 FLAGELO DA SECA. Levas de pedintes nas ruas da cidade
CAMOCIM. (Por Artur QUEIROZ). É dolorosamente triste ver-se o dia todo, levas de pedintes perambulando pelas ruas da cidade, implorando a caridade pública, procurando subsistir à inclemência da seca. Não chove e o camponês já desenganou-se. Desesperados pela situação deplorável, ameaçam a todo instante invasão em casas comerciais, inspirados pelo clássico axioma: A Fome é Ruim Conselheiro.
O curioso é que o inverno retardou, mas, como a esperança é a última que morre, o dia 1º do março marcou, desde as primeiras horas da madrugada, na opinião de todos, o início de um inverno arrojado. Com fortes trovoadas começou a abundante chuva logo pela madrugada, que perdurou pelo dia todo. Muita chuva, chuva grossa, chuva fina, a intervalos. Dia silente, escuro, com os pardos horizontes carregados. -E choveu com abundância, diariamente, até o dia 6. Sapos euforicamente cantando toda a noite nas lagoas, chão molhado, encharcado. Alegria geral, e legume nascendo exuberantemente viçoso. Durou pouco a odisseia. Do dia 7 para cá, nada de chuva: tempo limpo, vezes outras, na maioria, intensamente nublado, mas chover que é bom, não chove. O camponês desesperou, o sapo calou e sumiu o legume e o espectro da miséria se identifica em toda face marcado pelo estigma da devastadora seca, numa conjuntura cm que a média classe e a pobre já subsistia com ingente esforço, ante a dificuldade de ganhos, ganhos mirrados, e a perene ascensão vertiginosa da espiral dos preços das utilidades.
Restam agora, portanto, os socorros da administrativa federal, em sufrágio desta lamentável situação. Consta que será eficiente e breve, pois a conjuntura não tolera a mínima delonga. Que venha logo, portanto, as providencias salvadoras do poder Central.

    Espero que este exemplo de escrita, diante de tanta baboseira que se escreve atualmente nos canais de "imprensa" nas redes sociais, sem falar das barbaridades cometidas contra a língua pátria, possa inspirar quem se aventura neste campo.

Fonte: Jornal "O Unitário", 02 de abril de 1958, p. 3
Foto: CAMOCIM ONLINE

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