sexta-feira, 19 de outubro de 2012

CAMOCIM NA PENA DE LÍVIO BARRETO

Beira-mar de Camocim. Foto: Arquivo do blog

Imagine a Camocim no final do século XIX. Imaginou? De qualquer forma, se nossa imaginação não for capaz de retroceder no tempo, acompanhemos as informações sobre nossa cidade do poeta simbolista cearense Lívio Barreto, nascido em Granja-CE, numa carta escrita em 1894 enviada a um amigo. Lívio Barreto, um dos poetas oriundos do movimento literário cearense, denominado Padaria Espiritual foi guarda livros em Camocim da Companhia Maranhense de Navegação a Vapor, tendo ainda exercido sua profissão em Granja, Fortaleza e Santa Maria de Belém do Grão-Pará. Na referida carta, o poeta se rende ao tédio crepuscular de uma tarde sem a movimentação característica dos portos de outrora. O documento dá uma ideia do espaço urbano de Camocim no final do século XIX. A correspondência de escritores cada vez mais vem sendo usada por historiadores como documentos que revelam não só a intimidade destes homens de letras, como de contexto histórico dos espaços onde atuavam.
Camocim, domingo, 2 de dezembro de 94
am. Ulysses,
Abraço-te.
Li tua carta e respondo-a. Faço sinceros votos para que a saúde te tenha voltado ao corpo, e com ela a sentillante alegria que sempre iluminou o teu fino e nervoso rosto de bohemio.
Dou-te notícias de Camocim. Não te interessam? Pois tenha paciência.
Isto aqui não é sertão nem é serra e assemelha-se à praia. A hora em que te escrevo, 5 da tarde, sopra um vento triste e frio de começo de inverno. A maré escua-se lentamente como n’uma agonia sem lamentos, E por traz das casas baixas d’este burgo o sol se embebe no poente, Esmorecido, sem esplendor, sem a pompa áurea dos acasos de verão.
Para minha frente, o rio (aqui diz-se mar),para as minhas costas o ... matto, e por toda a parte a areia, o pó. Que tédio! No porto o perfil alvacente e incaracterístico de uma escuna norueguesa ou o costado sujo de um vapor pernambucano.
Nos trapiches abandonados, atulhados de fardos de algodão, os rapazinhos pescam à luz moribunda da tarde, saccando d’água peixes pequenos que protestam estorcendo-se á ponta da linha com a fúria de um peixe!
Vista ao largo. A maré de vazante a barra não tem attractivos. É bom de ver-se quando ella enche, as mandas de ondas com suas jubas brancas de espumas, albalroando-se, desfazendo-se para se tornarem a formar, fazendo chegar até nós a surda melopéia longíqua do mar, o coro eterno das vagas.
Lívio Barreto. Foto: internet
Ainda á nossa frente, da outra banda, os mangaes esbatidos, de um verde escuro á claridade mórbida e triste do fim do dia, trancam o horisonte com a longa sombra de sua folhagem escura, tão densa que atravez d’ella não se vê o sol quando de salteia, de manhã, em curtos vôos lentos uma garça põe com a brancura de sua plumagem uma nódoa de leite n’aquella tela cor de lodo, e rasando a ilha dos mangues, um braço do rio alonga-se matto a dentro, perdendo-se em meandros, esvahindo-se ao longe...
Da Granja, desce uma canoa de vasante, batendo os remos, como barbatanas, esguia e longa, com os seus dois remadores e o seu mestre apoiando o cotovelo sobre a cana do leme immóvel.
E sobre toda essa paysagem incolor, de uma monotonia de missa de dia de fazer, paira a aza pesada e sonnolenta do aborrecimento o mais medonho, do tédio o mais cruel!
Ah! se aquellas nuvens que ameaçam chuva se rasgassem agora, como eu iria me deitar satisfeito, ás 6 horas da tarde, fugindo a este enjôo que envenena como uma despepsia!
Adeus, abraço, etc.
Lívio Barreto.

Fonte: “O Literário”. Ano IV-Edição 02. Maio de 2002, p. 2. Camocim-CE.
















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