sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

RAIMUNDO CELA - O PINTOR QUE VIVEU EM CAMOCIM

Normalmente não reproduzimos matéria neste blog, a não ser quando a mesma se refira diretamente à nossa história. Este é o caso do artigo abaixo assinado pela historiadora Isabel Lustosa que trata da trajetória do artista sobralense-camocinense, Raimundo Cela, internacionalmente conhecido por suas telas que retrataram os jangadeiros e pescadores cearenses, tendo, evidentemente Camocim e sua gente como inspiração, já que grande parte de sua vida viveu em Camocim.

Quadro: Abolição dos Escravos no Ceará. 1938.
Raimundo Cela e as jangadas do Ceará
Raimundo Cela foi o pintor cearense mais importante de sua geração. Sua história de vida, que resumo aqui, foi contada por outro artista cearense, Nilo Firmeza, o Estrigas, em livro belíssimo publicado há alguns anos pela Pinakotheke. Cela era pintor e era engenheiro. Artista e engenheiro, uma contradição em termos? Pode ser, mas talvez a engenharia explique muito da qualidade de sua arte. Segundo Cláudio Valério Teixeira, na obra de Cela nada é inocência, tudo é fruto de planejamento, economia e técnica. Mas tudo é também movimento, força, agilidade e graça. Sua arte não procura simplesmente imitar as coisas representadas, é de uma beleza solene, meio melancólica, mas luminosa. Ela nos revela de maneira muito sutil, sem grandiloquência ou pieguice a poesia que inspira a visão dos pescadores e de suas jangadas nas praias do Ceará.
Raimundo Cela nasceu em 1890, em Sobral, no interior do Ceará, mas criou-se em uma cidade litorânea próxima: Camocim. O pai de Cela era espanhol, funcionário de uma empresa ferroviária. Sua mãe era professora. O meio familiar em que o artista foi criado era um meio culto e a superioridade de sua educação e de sua cultura se patenteiam nas poucas cartas dele para o pai. Cela veio para o Rio de Janeiro em 1910, estudar engenharia como desejava o pai e pintura como ele mesmo desejava. Aqui formou-se sob a orientação dos maiores mestres do começo do século, ficando pessoalmente ligado a Eliseu Visconti. Terminado o engenharia, chegou a trabalhar com o Marechal Rondon e, mais tarde, no escritório do então famoso arquiteto, Arquimedes Memória (autor do projeto da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, a famosa "gaiola de ouro").
Em 1917, Cela ganhou o prêmio de viagem do Salão Nacional de Belas Artes. Por causa da Guerra e da necessidade de concluir o curso de engenharia só viajou mesmo em 1920. Permaneceu na França por dois anos, quando dedicou-se ao aprendizado da gravura em metal. Suas gravuras, segundo Adir Botelho, não são apenas registros gráficos, históricos, são obras universais no sentido e na expressão.
De volta ao Brasil foi viver no Camocim, onde trabalhou durante dez anos como engenheiro de uma pequena usina elétrica. Em 1938, a pintura de um painel para o governo do Estado representando a libertação dos escravos do Ceará o trouxe de volta à vida artística. Pouco depois, em 1940, estabeleceu-se em Fortaleza onde constituiu ateliê nos autos do teatro José de Alencar. O artista francês Jean Pierre Chabloz que o conheceu nessa fase nos diz que o mais lhe agradou no estilo pessoal de Cela foi seu cunho tipicamente francês: um artista requintado, cultíssimo, dotado num alto grau de ´mesure´, daquela ´finesse´ afetuosa e ligeiramente irônica que fazem o encanto indiscutido dos espíritos e das sensibilidades verdadeiramente franceses.
Cela era um homem discreto e reservado sem, no entanto, ser antipático. Ele fazia parte daquela geração de brasileiros que se criara sob a influência da cultura francesa. E esta, aliada à influência dos mestres brasileiros do final do século XIX marcaram sua obra. Cláudio Valério Teixeira identifica em seu trabalho a simbiose da pintura com a aquarela: uma seleção de pigmentos de quem já havia olhado a pintura impressionista e por ela se deixado envolver, uma paleta aberta cujas cores luminosas tomam o lugar das terrosas. O artista soube se apropriar dos temas de sua terra, dando-lhes um tratamento natural, mas valendo-se de distorções quase caricaturais. Recurso que, na opinião de Cláudio Valério, subtrai de seus desenhos o caráter naturalista, fazendo-os ganhar em expressividade. O importante, diz ainda o mesmo crítico, é verificar como o artista vai transformando a forma clássica - poses típicas de estudos de academia - em traços pessoais, desenhos menos laboriosos, realizados ao natural, agregando características formais inteiramente próprias.
Raimundo Cela, sendo um moderno, nunca foi um modernista. Ele apareceu justamente naquele momento de nossa história cultural em que as artes iam ser atingidas pelo radicalismo de 1922. Criou-se então o mito, que hoje vem sendo revisto pelos estudos sobre o pré-modernismo, de que havido um hiato entre os mestres do século XIX e a Semana de Arte Moderna. Neste período nada teria sido produzido de interessante e criativo. Os que surgiram naquela fase foram mantidos assim numa espécie de limbo cultural. Mas o valor da arte de Raimundo Cela deve-se ao fato de ter sido concebida à margem das escolas, de não ter sido contaminada pelos modismo passageiros. O pintor retornou ao Rio de Janeiro em 1945. Aqui tornou-se professor de gravura em metal da Escola Nacional de Belas Artes (Enba) cargo que ocuparia até a sua morte, em 1954. Nesta última fase da carreira, Raimundo Cela foi duas vezes premiado com a medalha de ouro do Salão Nacional de Belas Artes. Retirado em Niterói, viveu ali seus últimos anos apegado aos quadros dos quais vendeu muito poucos. Não que lhes faltassem compradores apenas porque o artista tinha-lhes um apego sentimental e raramente se dispunha a separar-se deles.
Além das imagens de surpreendente beleza, o que a obra de Raimundo Cela nos proporciona é uma janela para o Ceará. Um Ceará de praias oceânicas, de jangadas e de jangadeiros. Um Ceará da gente do mar, com muita luz, vento, areia e água salgada. Certamente está em seus quadros a melhor tradução pictórica dessa paisagem nordestina.
Isabel Lustosa

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