"Contos Camocinenses",Tela vencedora do 31º Salão de Artes de Camocim, pintada por Chagas Albuquerque. 2019. |
Para marcar o aniversário de Camocim, trazemos as impressões do maior poeta granjense - Lívio Barreto, escritas numa carta em 1894 enviada a um amigo. Guarda livros em Camocim da Companhia Maranhense de Navegação a Vapor, tendo ainda exercido sua profissão em Granja, Fortaleza e Santa Maria de Belém do Grão-Pará, o poeta se rende ao tédio crepuscular de uma tarde sem a azáfama característica dos portos. O documento dá uma idéia do espaço urbano de Camocim no final do século XIX. A correspondência de escritores cada vez mais vem sendo usada por historiadores como documentos que revelam não só a intimidade destes homens de letras, como de contexto histórico dos espaços onde atuavam.
Lívio Barreto. Lápis de Otacílio Azevedo. Fonte: deliviobarreto.blogspot.com |
“Camocim, domingo, 2 de dezembro de 94.
am. Ulysses,
Abraço-te.
Li tua carta e respondo-a. Faço sinceros votos para que a saúde te tenha voltado ao corpo, e com ela a sentillante alegria que sempre iluminou o teu fino e nervoso rosto de bohemio.
Dou-te notícias de Camocim. Não te interessam? Pois tenha paciência. Isto aqui não é sertão nem é serra e assemelha-se à praia. A hora em que te escrevo, 5 da tarde, sopra um vento triste e frio de começo de inverno. A maré escua-se lentamente como n’uma agonia sem lamentos, E por traz das casas baixas d’este burgo o sol se embebe no poente, Esmorecido, sem esplendor, sem a pompa áurea dos acasos de verão.
Para minha frente, o rio (aqui diz-se mar),para as minhas costas o ... matto, e por toda a parte a areia, o pó. Que tédio! No porto o perfil alvacente e incaracterístico de uma escuna norueguesa ou o costado sujo de um vapor pernambucano.
Nos trapiches abandonados, atulhados de fardos de algodão, os rapazinhos pescam à luz moribunda da tarde, saccando d’água peixes pequenos que protestam estorcendo-se á ponta da linha com a fúria de um peixe!
Vista ao largo. A maré de vazante a barra não tem attractivos. É bom de ver-se quando ella enche, as mandas de ondas com suas jubas brancas de espumas, albalroando-se, desfazendo-se para se tornarem a formar, fazendo chegar até nós a surda melopéia longíqua do mar, o coro eterno das vagas.
Ainda á nossa frente, da outra banda, os mangues esbatidos, de um verde escuro á claridade mórbida e triste do fim do dia, trancam o horisonte com a longa sombra de sua folhagem escura, tão densa que atravez d’ella não se vê o sol quando de salteia, de manhã, em curtos vôos lentos uma garça põe com a brancura de sua plumagem uma nódoa de leite n’aquella tela cor de lodo, e rasando a ilha dos mangues, um braço do rio alonga-se matto a dentro, perdendo-se em meandros, esvahindo-se ao longe...
Da Granja, desce uma canoa de vasante, batendo os remos, como barbatanas, esguia e longa, com os seus dois remadores e o seu mestre apoiando o cotovelo sobre a cana do leme immóvel.
E sobre toda essa paysagem incolor, de uma monotonia de missa de dia de fazer, paira a aza pesada e sonnolenta do aborrecimento o mais medonho, do tédio o mais cruel!
Ah! se aquellas nuvens que ameaçam chuva se rasgassem agora, como eu iria me deitar satisfeito, ás 6 horas da tarde, fugindo a este enjôo que envenena como uma despepsia!
Adeus, abraço, etc.
Lívio Barreto”.
(Publicado no “O Literário”. Ano IV-Edição 02. Maio de 2002, p. 2. Camocim-CE).
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