segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

AS MULHERES DA BEIRA DO CAIS DE CAMOCIM

Antiga zona portuária de Camocim. Arquivo do blog.
Houve um tempo em que me dediquei todas as manhãs para pesquisar a documentação do fórum local e, saltou-me os olhos como as mulheres são tratadas nos inquéritos. Há um óbvio machismo contido nos depoimentos, sem contar a maneira como as mesmas são desqualificadas ou deslegitimadas nos processos, principalmente nos de sedução e defloramento.
Sem declinar nomes, posto que, é factível que familiares dessas pessoas ainda estejam vivas e, para resguardar a privacidade das mesmas, utilizaremos nomes e apelidos fictícios para nossas histórias. Note-se também a íntima relação feita nos casos  aqui citados das “profissionais do sexo” com o antigo cais do porto e com os homens do mar.
Em 1919, o Presidente da Associação Comercial em ofício enviado ao Delegado de Polícia de Camocim, pedia enérgicas providências para conter os roubos das mercadorias deixadas fora dos armazéns do porto por um “grupo de vagabundos – homens ociosos, meninos vadios e mulheres da vida airada”. Além do preconceito, a associação da prostituição com o roubo. Em outro ofício, o presidente,  chama a atenção da autoridade para conter os “actos indecorosos contra a moral que succede muitas vezes serem testemunhas dessas scenas, famílias que por alli passam”.
Mas, a mocinha que não quisesse “ficar falada” teria que primar pelo recato e evitar andar com “os marinheiros de bordo dos navios que ancoram neste porto”. Esta foi a alegação que deu o pescador Raimundo Preamar para não se casar com a menor Branquinha, filha da prostituta Maria “Rabo Grande”, acusado por esta de tirar-lhe a virgindade. Raimundo Preamar acaba se casando com Branquinha no religioso, por pressão do delegado, mas não “faz vida com ela”. O interessante nesse caso é que, independente do comportamento de Branquinha que nasceu e se criou na zona do Terrimar o que pesa nas declarações das testemunhas é a vida pregressa de sua mãe. Uma testemunha arrolada diz que ela é a culpada por não “botar sentido o namoro ceboso de sua filha”. O próprio acusado diz que a mãe de Branquinha “é mulher do bagaço, meretriz”. Maria “Rabo Grande” fazia ponto no Mercado Público durante o dia e se embebedava frequentemente à noite pela beira do cais. Apesar disso, a história tem um desfecho surpreendente e o acusado é condenado a trinta meses de reclusão e cumpre efetivamente doze.
Uma outra queixa chega à Justiça, após a menor “ofendida”, codinome Danadinha, já ter tido o filho, pretenso fruto do “congresso sexual” entre ela e o sedutor João Miguel. Nos autos de declarações, a mãe da vítima disse que não tinha representado antes contra João Miguel porque o mesmo vinha sempre prometendo casar com sua filha que foi seduzida  pelo mesmo com a promessa de lhe dar “uma casa e uma vaca”. Como podemos perceber, não é só político que promete. João Miguel se vale de testemunhas que apontam uma má conduta da ofendida. Uma delas declara “Danadinha costuma frequentar o cais local, entrando no interior dos navios que ali atracavam, demorando bastante em companhia de tripulações de barcos ancorados no Porto de Camocim”. Um outro diz: “... que a ofendida sempre viveu solta na rua, sem que os pais olhassem para o procedimento da mesma”.
As próprias alegações finais da Promotoria já apontam para o desfecho final deste processo, pedindo a absolvição do imputado: “A vida, o meio ambiente onde laborava a menor, facilmente a levariam ao mundo do vício, tendo-se em vista não ter um lar honesto e sem mancha, quando uma das testemunhas alega haver mantido relações sexuais com Danadinha, tendo o próprio pai em casa (dela)”. Na sentença de absolvição do acusado, o Juiz ressalta que o acusado “é pessoa de conceito na cidade (...) sendo sua palavra, por isso mesmo, merecedora de fé, até prova em contrário”. 
Poderíamos citar inúmeros casos pesquisados, mas, talvez o leitor não esteja interessado em saber das artimanhas usadas para se deflorar uma “pequena incauta” de antigamente.

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